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terça-feira, 17 de outubro de 2006

Sérgio Ferro visita Belo Horizonte

Amanhã, às 19h, o pintor, desenhista, arquiteto e professor Sérgio Ferro participará de uma palestra em Belo Horizonte.

Único remanescente do trio contestador que trincou o concreto da escola paulista, Sérgio Ferro continua um crítico contumaz da técnica pela técnica e das relações no canteiro de obras. Abaixo, há uma entrevista concedida para a Revista Projeto Disign e publicada, também, no site www.arcoweb.com.br.

"As críticas continuam ácidas e duras, mas, na antevéspera de comemorar 68 anos, Sérgio Ferro é uma figura gentil e amável. “É impossível viver num sistema totalmente contraditório e escapar da contradição”, afirma. Juntamente com Flávio Império (1935-85) e Rodrigo Lefèvre (1938-84), ele formou o trio mais contestador que passou pelos bancos da FAU/USP: “Éramos muito metidinhos”, confessa. O poder de alcance do debate provocado pelos três arquitetos potencializou-se pelo momento histórico e político em que foi realizado. Desde a década de 1970 Ferro vive na França. Recentes estudos acadêmicos e a publicação de livros retiraram-no de seu exílio - agora voluntário - e voltaram a expor sua linha de pensamento. De passagem pelo Brasil para lançar uma coletânea de escritos de sua autoria, editada pela Cosacnaify, ele falou a PROJETO DESIGN. Leia o texto em que Roberto Segre analisa a trajetória intelectual de Ferro na Projeto Design 314.

O encontro entre o senhor, Rodrigo Lefèvre e Flávio Império foi uma aproximação por afinidade?
Estudei com Rodrigo no Colégio São Luís, éramos colegas de ginásio e sempre fomos muito amigos. Já Flávio eu conheci na FAU, no segundo ano. E, pela nossa ligação com a arte, ficamos muito próximos.

Vocês chegaram a fazer trabalhos da faculdade juntos?
Sim. Naquele tempo, os alunos abriam escritório bem antes de se formarem. Então, no segundo ano, eu e Rodrigo abrimos o escritório. Flávio entrou um pouquinho depois. Tinha mais gente que trabalhava conosco, mas que nunca pertenceu a esse núcleo de base: Geraldo Serra, Júlio Barone, Waldemar Herrmann, Luiz Kupfer, por exemplo. Barone participou dos primeiros esboços com abóbadas, quando começamos a fazer estudos de casas populares.

É verdade que o senhor chegava a ficar até quatro horas por dia lendo na biblioteca da faculdade?
É. Eu adorava aquela biblioteca, tinha livros excelentes. Eu lia muito e até hoje sou assim. No começo não queria muito fazer arquitetura, queria fazer pintura. Passava o tempo todo na biblioteca lendo sobre pintura.

De que maneira a arquitetura despertou seu interesse?
De um lado, a prática profissional, que realizava desde o segundo ano de escola. Por outro lado, o contato com professores excelentes: [Vilanova] Artigas, Paulinho [Paulo Mendes da Rocha], [Carlos] Millan, [Joaquim] Guedes, [Jon] Maitrejean sabiam estimular, instigar, atrair. Não havia essa diferença entre mestre e aluno, isso só existia com Artigas. Todo sábado, por exemplo, íamos aos canteiros dos professores, que durante a semana criticavam nossos projetos. Aí as coisas se invertiam: nós é que discutíamos, criticávamos, perguntávamos. Era um processo de ensino extraordinário.

Mais rico, não?
A arquitetura estava sempre presente, não era só papel, cérebro eletrônico e maquetinha. Era ensino de arquitetura mesmo, não de desenho de arquitetura, nem de discurso de arquitetura.

O senhor lembra alguma dessas visitas extracurriculares de sábados?
Uma vez fomos visitar a casa de Millan, aquela dos quatro “pezinhos”. Quando chegamos, tinham acabado de tirar as fôrmas e só tinha três “pezinhos”: um deles não tinha concretado direito. Então começou uma discussão pois, teoricamente, a casa deveria estar no chão, mas não estava. Millan comentava mais sobre a técnica; já Artigas falava mais sobre a questão social.

Ele não falava sobre a técnica?
Falava, mas não com tanta intensidade. Lembro muito de algumas casas dele, como aquela que tem uma rampa e um jardim central [residência Bittencourt]. Eu e Rodrigo a copiamos quase integralmente, na casa de Helladio Capisano, só que em vez de vidro em torno do parque nós colocamos aquelas telas.

Quando começou sua desconfiança, ou talvez de seu grupo, sobre o que era realizado em arquitetura na época?
Isso foi mais perto do golpe de 1964 e também tem relação com a construção de Brasília. Eu e Rodrigo tínhamos vários projetos em Brasília. Víamos os canteiros da cidade e não supúnhamos tudo aquilo que se soube depois: tanta violência, tanto drama, aquele horror. E aquele contraste entre o discurso desenvolvimentista, populista de Juscelino Kubitschek - que era o discurso dominante na época - e a realidade sofrida, pobre. Foi naquele momento que Rodrigo e eu começamos a ver que havia algo estranho no reino da arquitetura. Era um momento de grande politização, mesmo antes do golpe, no período de Jango [João Goulart], e com o discurso eufórico do Partido Comunista, que achava que estava quase no poder. Muito mais ainda depois do golpe, quando começaram a se armar as primeiras reações da ditadura e toda questão política não era colocada só teoricamente, mas na prática. Foi nesse período que começamos a desenvolver nossa crítica à arquitetura. O primeiro aspecto que nos chocou foi ver a arquitetura, que antes se preparava para atender as necessidades sociais, da casa popular, da creche, sendo utilizada em projetos de casinhas nos Jardins, no Morumbi.

As experiências com as abóbadas aparecem em paralelo a isso? Guedes já afirmou que as abóbadas de vocês são derivadas do trabalho dele. É isso mesmo?
Pode ser. Nossa pesquisa foi sobre a casa popular e Guedes realmente realizou uma abóbada catalã, de tijolos, que Le Corbusier também fez. Nossa intenção era procurar o meio de fazer uma casa popular digna, no espaço mais generoso possível, econômico. Quanto à autoria, a questão é complicada, porque sempre se copiou e ninguém nunca criou.

Guedes se refere à colaboração de um de vocês no escritório dele, na época das abóbadas.
Fui eu, mas durante apenas um mês. Guedes, evidentemente, era o chefe do escritório. Eu nunca fui muito modesto e também devo ter um ego grande e aquilo entrou em choque. Mas não briguei com Guedes, sou amicíssimo dele.

Na ocasião em que o senhor já não compartilhava desse tipo de arquitetura que se fazia em São Paulo, alguma obra paulista chamava sua atenção?
Tem um projeto lindo, muito simples, que Guedes fez para o pai dele. O próprio Artigas nunca recuou de sua posição, sempre manteve a exigência ética. Também não posso esquecer os primeiros edifícios desenhados por [Oscar] Niemeyer e por Lelé [João Filgueiras Lima]: ali havia uma arquitetura com possibilidade de atender às demandas do país, não era apenas sonho.

O que o senhor acha da obra de Lelé?
Admiro-o muito. É o único, no Brasil, que não faz manufatura serial, faz a manufatura heterogênea, com aquelas peças de pré-moldados. Eu queria aproveitar para fazer um protesto. A usina de pré-fabricação de Lelé é ligada ao Ministério da Saúde. Ele foi proibido de fazer prédios para órgãos que não estão vinculados ao ministério por pressão de grandes construtoras. O resultado é que aquela usina magnífica está demitindo funcionários e com capacidade ociosa.

O senhor reside na França desde os anos 1970. Foi uma opção consciente não mais voltar definitivamente?
De certa maneira, sim. Quando cheguei na França, fui impedido de ficar em Paris, onde havia quantidade grande de exilados brasileiros. Minha única possibilidade era o interior. Acabei indo para Grenoble e estabeleci família lá.

E o senhor chegou com um currículo embaixo do braço ou já havia uma indicação?
Tinha a indicação de um ex-adido cultural da França em São Paulo, que eu conhecia daqui. Ele me propôs ajuda e apresentou meu currículo para quatro escolas de arquitetura, todas no interior. Grenoble foi a primeira a me oferecer um contrato.

O senhor acompanha a situação da arquitetura atual?
Acompanho pelas revistas e nas viagens que faço ao país. Mas não tenho mais a pretensão de conhecer a arquitetura brasileira em profundidade.

Sente alguma falta de exercer a prática da arquitetura?
Enorme. Mas meu título não era reconhecido na França, e depois eu me impus uma regra: a de não fazer arquitetura com canteiro tradicional, de exploração. E o que conseguimos fazer foram coisas pequenas, dentro da universidade. Pelo caráter experimental, antes de mais nada, procurava modificar toda essa discussão dentro da equipe.

Houve algum avanço nesse sentido?
Houve, mas a ordem dos arquitetos e a própria administração davam um jeitinho de acabar com aquilo. Hoje acho que isso só é possível em condições especiais ou à margem do sistema, como no caso dos sem-terra, dos sem-teto.

A posição defendida pelo senhor causou uma divisão no pensamento da FAU/USP. E alguns arquitetos que seguiram suas idéias hoje estão no exercício de cargos públicos. Como o senhor analisa os avanços efetivos desse grupo?
Ontem mesmo falei com uma dessas pessoas, a Ermínia [Maricato]. Ela tem trabalhos magníficos de planejamento urbano, de legislação, de financiamento de habitação. Agora, na escala gigantesca da construção atual, tudo isso desaparece. E, das experiências que conheço, só para chegar no canteiro é necessário andar mais de uma hora dentro de São Paulo. São experiências grandes, mas elas somem no todo.

Cite um exemplo.
A Usina, de Pedro Arantes. Eles fazem coisas magníficas, de canteiro autogerido. Mas são experiências que, em certa medida, não têm como sair disso, pois o obstáculo número um de um outro tipo de canteiro é o salário.

O que o senhor acha de industrializar um componente da construção, como no caso da estrutura utilizada recentemente pela Fundação para o Desenvolvimento da Educação?
Acho interessante. Tenho a fama de defender o artesanato, as coisas passadas, mas não se trata disso. Não tenho nada contra a industrialização total ou parcial da arquitetura. Não creio que isso interesse à exploração econômica, que ganha mais dinheiro se a arquitetura ficar atrasada.

O senhor acha que isso é absolutamente consciente?
Se não é consciente, é muito bem-feito. Quanto mais mão-de-obra tiver no canteiro, melhor: é aí que se produz a mais-valia. Quando um setor ou parte da economia se industrializa, o lucro real é muito pequeno. Depois, através de empréstimos, monopólio, custo financeiro etc., o valor é retirado de outro setor e colocado nele. Uma das fontes que distribuem valor para quase todos os setores é a construção civil.

No entanto, até hoje políticos de esquerda incentivam a construção civil por causa da absorção imediata da mão-de-obra. Como o senhor vê isso?
Isso é um pouco reflexo da ditadura: Delfim Netto [ministro da Fazenda de 1967 a 1974] defendia a manutenção de setores atrasados para absorver mão-de-obra e gerar emprego. Mas acho que há outras maneiras de fazer isso. Um país planejado racionalmente procuraria modificar o trabalho no canteiro de obra, com condições melhores, outro mecanismo de pagamento. E por que não industrializar? Nunca fui favorável a ficar atrás do artesanato. Creio também que, se o país se tornasse socialista, não seria prioritário industrializar a construção civil: há outras carências muito mais fortes, como a saúde, a educação etc.

Suas telas, com motivos renascentistas, agradam em cheio determinado público: os apartamentos neoclássicos de São Paulo estão recheados de telas de Sérgio Ferro. Como o senhor encara isso?
É contraditório, mas é impossível viver num sistema totalmente contraditório e escapar da contradição. Minha produção em pintura é bem dividida em duas partes. A primeira é a do historiador, do crítico de arte. Representa 90% dos casos. Eu estudo os renascentistas: como ele fazia isso, como poderia ficar de outro jeito. A outra parte, que consigo fazer raramente, é a minha linguagem. Praticamente só consigo fazer em murais, como o do Memorial da América Latina ou no Museu de Curitiba.

Voltando à participação do operário na obra, como o senhor vê o trabalho de Lina Bo Bardi?
É belíssimo.

Não acha que há algo de folclórico?
Não. Pode parecer, porque ela usa formas quase grosseiras, arredondadas. Mas ali há uma possibilidade grande de outra plástica. Uma das muitas dificuldades que teremos quando mudar todo esse sistema será criar uma nova plástica, pois esta está inteirinha embebida pelo capital. Não basta tirar o capital. Na União Soviética fizeram isso e não deu em absolutamente nada. Mas eles não transformaram a relação do canteiro, ela continuou praticamente a mesma, talvez ainda mais sacralizada, pois era em nome do povo, do partido.

E a plástica piorou, não?
Ficou muito pior. Por outro lado, todas as experiências com outros tipos de relação de produção resultaram em outra plástica. Só para dar um exemplo, podemos citar [Antoni] Gaudí.

Mas também existem riscos de as linguagens novas serem adotadas de forma banal, como aconteceu com as abóbadas, encontradas em diversas casas burguesasem São Paulo.
A capacidade antropofágica do sistema é total: engole tudo. Por isso, a resistência ao sistema é muito difícil. A saída é transformar essa joça! O próprio sistema já se encarregou de se suicidar. Há estudos de economistas marxistas mostrando que esse caminho vai levar a um buraco: uma concentração de riqueza extraordinária, que contrasta com a pobreza absoluta. O próprio Banco Mundial já desistiu de resolver o problema da moradia popular: eles acham que não há solução.

Como o senhor vê a produção da geração mais nova, que bebe na fonte da escola paulista?
Tenho profunda admiração pela escola paulista, mesmo que ela não tenha transformado as relações de produção no canteiro. Isso porque um dos critérios dessa transformação é a racionalidade produtiva, ao contrário do que possa parecer à primeira vista. A escola paulista foi, pelo menos no momento de Artigas, uma arquitetura profundamente racional.

Rino Levi era três vezes mais racional do que Artigas.
O racionalismo de Rino Levi, que eu admiro, era neutro: a técnica pela técnica. Artigas não. A racionalidade de Artigas era política.

Mas Artigas não tinha mais apego à forma?
Artigas não era um formalista, mesmo se pensarmos nas colunas da FAU: pode parecer um desenho formal, mas é profundamente lógico. Os pilares da FAU são um pouco exagerados nas formas, mas isso é necessário. A forma estritamente racional não visa essa racionalidade para o olho. É preciso, às vezes, exagerar um pouquinho para que o conteúdo racional ali expresso possa parecer mais. Toda obra tem que ensinar, tem que falar. Mas depois que você fizer tudo racional há espaço para sua mão ir um pouquinho além, dar uma bordadinha. Mas não é gratuito: é como se o gesto técnico preciso se encantasse tanto com ele mesmo que se permite uma alegria poética.

A necessidade que o ser humano tem de ornamento justificaria a profusão neoclássica, como nos prédios de São Paulo?
Não existe a necessidade de você mascarar, sobrepor, encapar. Nesse sentido, não conheço arquitetura mais ornamental do que a de [Adolf] Loos e do primeiro Le Corbusier, do purismo: eles encobriam tudo com aquela capa branca purista, é a ornamentação no extremo.

Alguém ainda faz ornamentos hoje?
Quase todos, de ponta a ponta: [Frank] Gehry, [Christian de] Portzamparc, [Jean] Nouvel. Mas é a forma pela forma.

Atualmente, na arquitetura internacional, não há nada que lhe interesse?
Gosto muito de [Renzo] Piano. Ele tem uma seriedade técnica muito grande. Entretanto, é um pouco aquilo que falei de Rino Levi: a técnica pela técnica. Piano tentou modificar um pouco as relações de canteiro, mas deixou de lado. É justamente por essa técnica fechada que ele acaba escorregando várias vezes.

Fizemos uma enquete com críticos de arquitetura para uma avaliação dos anos 1990 e a maior parte deles destacou a obra de Paulo Mendes da Rocha. O senhorconcorda?
Concordo. Paulo Mendes continua aquela tradição de Artigas, com uma racionalidade construtiva grande, com uma pureza ainda até maior do que a de Artigas. E fez coisas belíssimas, como a Pinacoteca [do Estado, em São Paulo]. É o que mais gosto da atual produção brasileira: de um lado ele, de outro Lelé.

E as obras novas de Niemeyer?
Adoro Niemeyer. A postura dele é fazer avançar a tecnologia da produção através da ousadia formal. É a mesma posição de Artigas, só que de outro jeito. Artigas desejava transformar a racionalidade técnica, e a arquitetura iria junto. Ele era mais racionalista e Oscar mais poético. Mas os dois têm a mesma postura do Partidão antigo, do desenvolvimentismo.

Fale um pouco dos bastidores do seu livro clássico, O desenho e o canteiro. O senhor escreveu em quanto tempo?
Demorou dez anos. Começou com as dúvidas minhas e de Rodrigo sobre arquitetura. Acho que foi em 1967, 1968, na época em que eu dava um curso de teoria da arquitetura. Mas só consegui terminá-lo na França. Bento Prado, professor de filosofia, tinha uma revista chamada Almanaque. Com uma personalidade ótima, muito discreto mas sempre provocador, ele publicou o texto no Brasil pela primeira vez, entre 1975 e 1976, em dois capítulos.

Por Fernando Serapião. Publicada originalmente em PROJETODESIGN Edição 314 Abril de 2006."

Um comentário:

Anônimo disse...

Ferro e melhor pintando que escrevendo sobre arquitetura.