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sexta-feira, 20 de outubro de 2006

Vamos às compras? De um despertador, quem sabe.

O objeto, não, o objeto não. A paisagem, a cenografia. Sim, essas são as palavras mais adequadas.

Então... a cenografia – ou a paisagem, como queiram - era tão inusitada quanto gramas no asfalto, muros gigantes em praças públicas ou desfile de elefantes e leões anunciando a chegada de um circo qualquer na cidade.

Era um carrinho praticamente novo, cheio de papéis, deixado ao léu, no entroncamento de duas ruas movimentadas do bairro Floresta. Portanto, de mendigo não era, pois só papel havia. De catador de papel muito menos, pois se já é difícil empurrar esses carrinhos no supermercado, na cidade nem se fala.

Mesmo atônitos, riamos da cena e perguntávamos o motivo daquele carrinho parado ali. O medo superou a curiosidade e aproximamos lentamente do carrinho de compras. Quase que simultaneamente, uma menina, embaraçada e curiosa, pára ao lado do carrinho e coloca alguns papéis dentro.

Com a câmera na mão, sem nos apresentarmos, começamos a entrevistá-la.

Pedimos para ela se apresentar e, acanhada, ateu-se ao nome. A conversa foi estendendo à medida que a vergonha dos entrevistadores - que estavam sob o olhar foucauldiano do professor – e da entrevistada espairecia.

Aos quatorze anos, panfletava para um supermercado. Era uma forma de auxiliar nas despesas da casa. Conciliava com os estudos, pois gostaria de “entrar para a faculdade”.

Uma van a buscava em um ponto estabelecido, deixava-a no local da panfletagem e a buscava fazendo o trajeto ao contrário. Dentro do veículo, não prestava muita atenção na conversa dos demais ocupantes e atentava somente para a velocidade que as coisas passavam pela janela.

Questionada se ela observava o trajeto que fazia do carrinho às casas e vice-versa, respondeu que não, pois desligava do mundo para perder a noção do tempo. Para ela, os odores, os barulhos, as paisagens, a arquitetura das casas não tinham importância para ela, pois como detestava o trabalho, não gostaria de que nada a faça lembrar daquilo.

A memória, tão festejada - com seriedade - por arquitetos e psicólogos de vanguarda, aqui é renegada. E como usufruir uma cidade aonde as memórias ruins - com o perdão do trocadilho - são esquecidas? Por nós, pela coletividade, pelo Poder Público, por todos.

Aplaudemos, pois, as obras de tráfego que inundam as cidades, sem a capacidade de conciliar com o movimento corporal, privilegiando cem por cento o veículo automotor. Ovacionemos as voçorocas que engolem as cidades causando desespero para os mais carentes. Saudemos o fato das leis tornarem inoperantes. Reverenciemos a arquitetura fordista, mastigada, pronta, copiada, restrita. Contemplemos a apatia.

Portanto, incólumes, de passagem, vivemos na cidade, sufocados por arranha-céus, cobertos por viadutos, incrustrados nas academias e repousados no leito de Pilates.

E assim, no amago da cidade, não há ideal de convivência, interesse em socializar, muito menos capacidade de contribuir. Que arquitetura é essa?

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