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sábado, 28 de janeiro de 2012

Juizes: despreparados, ou ideologicos?

Edésio Fernandes*


Dentre muitas outras questoes profundamente relevantes – gestao urbana excludente, falencia da politica, truculencia policial, etc. – as chocantes cenas do despejo das centenas de familias do bairro do Pinheirinho no estado de Sao Paulo – muitas delas residentes no local ha mais de 8 anos – trouxeram a tona um outro tema que tambem requer atencao urgente: a maneira como os juizes brasileiros tem lidado com os conflitos sociojuridicos em torno do direito social de moradia, especialmente a maneira como a maioria das decisoes judiciais nesses casos tem ignorado e desrespeitado os principios basicos da ordem juridica em vigor. Com todo o respeito aos juizes cujas decisoes tem defendido com vigor esse direito constitucional, infelizmente a verdade e’ que eles sao a excecao que confirma a regra.

Confrontados com conflitos sociojuridicos de direito de moradia, atualmente como no passado, a maioria das decisoes judiciais se baseia quase que exclusivamente em uma leitura reducionista do Codigo Civil Brasileiro - CCB, afirmando uma nocao obsoleta de direito individual de propriedade imobiliaria como se fosse um direito absoluto, essencialmente de natureza economica. O direito de usar, gozar e dispor do bem imovel ainda e’ compreendido pela jurisprudencia dominante tao-somente a partir dos interesses do proprietario individual – a ponto de se justificar juridicamente o nao-uso, o nao-gozo e a nao-disposicao do bem imovel, em outras palavras, o direito de especular sem maiores qualificacoes. 

Por um lado, a enorme maioria dessas decisoes judiciais nao tem feito quaisquer referencias ao principio central da Constituicao Federal de 1988 – e que foi devidamente assimilado pela revisao do CCB em 2002 – da funcao social da propriedade. Ou seja, a nocao juridica em vigor de que nao ha direito individual de propriedade imobiliaria sem previa e plena consideracao pelo poder publico dos interesses sociais na utilizacao, gozo e disposicao do bem imovel. Nao ha nelas qualquer compreensao de que a propriedade nao apenas significa direitos individuais, mas sobretudo gera responsabilidades sociais e toda uma serie de obrigacoes para o proprietario. De acordo com a CF 1988, o nao cumprimento da funcao social da propriedade gera, dentre outras consequencias, o direito de usucapiao nas suas varias categorias, inclusive o usucapiao especial urbano em 5 anos. 

Por outro lado, tampouco ha nessas decisoes judiciais dominantes quaisquer referencias ao outro principio constitucional que explicitamente reconhece o direito social de moradia, incluindo o direito coletivo ‘a regularizacao dos assentamentos informais consolidados em areas privadas e publicas. 

Basta ler o teor dessas sentencas hegemonicas para perceber que tambem nao ha nelas referencias minimas ao internacionalmente aclamado Estatuto da Cidade, a lei federal de politica urbana de 2001, e nem a toda a abundamente legislacao federal em vigor sobre questoes urbanas, fundiarias, habitacionais e ambientais. O mesmo vale para as sentencas judiciais de desapropriacao em areas urbanas, que raramente mencionam essa nova e farta ordem juridico-urbanistica. 

Parece que para a maioria dos juizes brasileiros a visao antiquada do Direito Civil sobre o direito de propriedade imobiliaria ainda reina absoluta.

Se a ordem juridica nacional e’ totalmente ignorada, o que dizer entao do Direito Internacional… todas as declaracoes, tratados e convencoes assinados e ratificados pelo governo brasileiro ao longo de decadas, e que tambem explicitamente reconhecem o direito social de moradia – inclusive determinando explicitamente as condicoes para a legalidade dos despejos-, nao tem recebido qualquer consideracao da enorme maioria dos juizes brasileiros.

A explicacao para esse enorme descompasso entre o teor das sentencas judiciais e os principios claramente estipulados pela nova ordem juridica brasileira se deve ‘a combinacao de dois fatores principais. 

Em alguma medida, as sentencas judiciais revelam o total despreparo dos juizes para lidarem - juridicamente - com os conflitos sociojuridicos de propriedade, como consequencia imediata do fato de que o Direito Urbanistico, ramo do Direito Publico brasileiro que nos termos da CF 1988 organiza os principios, leis e instrumentos dessa nova ordem juridico-urbanistica, nao tem sido ensinado na maioria das Faculdades de Direito do pais, que ainda seguem um curriculo obsoleto e em muitos aspectos profundamente dissociado das questoes sociojuridicas contemporaneas.

Ainda ha no curriculo dos cursos juridicos uma carga excessiva de estudos de Direito Civil - e mesmo assim, tratando de maneira mistificadora o que diz respeito ao direito individual de propriedade imobiliaria, ja que de modo geral o ensino do Direito Civil no pais nao tem expressado a realidade constitucional de que o direito de propriedade e’ essencialmente um tema de Direito Publico, tendo os interesses publicos e direitos sociais supremacia sobre os interesses particulares e direitos inviduais. Como resultado dessa tradicao obsoleta de ensino juridico, a maioria dos juizes sequer sabe da existencia do internacionalmente premiado Estatuto da Cidade; muitos deles, quando questionados, pensam que se trata do Estatuto da Terra de 1964…

Se o despreparo e a desinformacao dos juizes sao fatos reais, ha um outro fator ainda mais relevante que explica o descompasso entre o teor das sentencas judiciais e os principios da nova ordem juridico-urbanistica: nao se pode mais ignorar a natureza profundamente ideologica dessas decisoes judiciais como a do caso do Pinheirinho.

Ao ignorarem toda a ordem juridica de Direito Publico em vigor quanto ao direito individual de propriedade imobiliaria, privilegiando uma leitura reducionista, distorcida e elitista do proprio CCB, tais decisoes revelam uma total falta de sensibilidade social dos juizes – frequentemente em nome de uma nocao enganadora de que o Direito seria “objetivo” e “neutro” em relacoes aos processos sociopoliticos, e que rotula as demandas pelo reconhecimento dos direitos sociais de moradia como “ideologicas” e/ou “politico-partidarias”–, mas tambem um desprezo pelo Direito. 

Afinal, se eles nao aprendem nas Faculdades de Direito que ha toda uma nova ordem juridico-urbanistica que determina uma nova concepcao de direito de propriedade, cabe aos juizes por dever de oficio fazer esse trabalho renovado de leitura e interpretacao constitucional e legislativa, com base em uma ampla pesquisa doutrinaria, antes de emitirem suas sentencas.

A verdade e’ que esse desprezo pela ordem juridica em vigor – especialmente pelos principios da funcao social da propriedade e direito social de moradia - expressa sobretudo a enorme resistencia da maioria dos juizes de aceitar que os pobres possam ter direitos de posse e propriedade, sobretudo nas areas mais centrais e cobicadas das cidades. Com frequencia, ocupantes de terras sao vistos pelos julgadores como meros usurpadores. Essas sim sao decisoes politicamente ideologicas, na medida em que nao se baseiam em uma leitura solida feita por dentro da propria ordem juridica, mas que expressam valores pessoais e especialmente preconceitos de classe dos juizes. 

Infelizmente, o Ministerio Publico – a quem cabe defender a ordem publica e a ordem urbanistica – tambem tem se recusado a cumprir esse papel no que diz respeito aos direitos sociais de moradia dos mais pobres, enquanto a brava Defensoria Publica, que tem abracado os principios constitucionais com vigor, tem sido esvaziada e mesmo esfacelada por toda parte.

Ha todo um outro discurso juridico, solido e consistente, que poderia e deveria ser construido pelos julgadores na resolucao de conflitos sociojuridicos de direito social de moradia a partir de uma leitura articulada da CF 1988, das leis nacionais como o Estatuto da Cidade e outras – inclusive uma leitura mais ampla e atualizada do proprio CCB – e das normas internacionais ratificadas pelo Brasil.

Cabe aos juizes consolidar na jurisprudencia um discurso juridico dominante que reconheca o direito social de moradia em suas diversas manifestacoes, e que, no caso de despejo inevitavel, condicione a legalidade dessa decisao - tao profundamente traumatica para as familias afetadas - a uma serie de exigencias, incluindo a negociacao de alternativas aceitaveis de relocalizacao.

Politicamente ideologica nao e’ a defesa dos direitos sociais de moradia, que tem uma firme base constitucional, mas sim a recusa dos juizes de abracarem incondicionalmente esse novo discurso juridico duramente construido como parte do processo de redemocratizacao sociopolitica e juridica do pais. 

Ao optarem por uma leitura distorcida e enganadora do CCB, condenando milhares de familias ao despejo, desamparo e humilhacao, negando a elas direitos de posse e propriedade que sao delas como se estivessem agindo em nome de alguma verdade juridica universal, natural e objetiva, tais decisoes tem cumprido duas funcoes principais: recompensar os proprietarios de imoveis que deixaram de dar uma funcao social a seus bens, assim reproduzindo com vigor renovado toda uma visao individualista e mercantilista do direito de propriedade imobiliaria, bem como fomentando uma cultura sociojuridica essencialmente patrimonialista e especulativa; e fortalecer as administracoes publicas excludentes que tem cada vez mais abusado da nocao de “interesse publico” para promoverem grandes intervencoes nas areas urbanas que mais diretamente beneficiam os interesses do capital imobiliario ‘as custas dos direitos de moradia de milhares de familias pelo Brasil afora.

Despreparados, insensiveis e sobretudo elitistas, movidos nao pela leitura da ordem juridica em vigor e compromisso com o Direito, mas principalmente por preconceitos de classe, ao desprezarem tao abertamente a ordem juridica democratica, esses juizes tem justificado e reforcado ainda mais a descrenca generalizada no Poder Judiciario – certamente o elo mais fraco no recalcitrante processo de democratizacao do pais.

Para as milhares de familias atingidas, suas sentencas tem tido os mesmos efeitos concretos da deploravel violencia policial que tanto nos envergonha enquanto nação.



 *Bacharel em Direito (Universidade Federal de Minas Gerais), Especialista em Urbanismo (UFMG); Mestre ( LL.M. in Law in Development,Warwick University, UK) e Doutor em Direito (Ph.D., Warwick University) e professor universitário em Londres.

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